sexta-feira, 25 de março de 2011

Peão do Engano



Ela já vinha separando os detalhes do todo. Um trabalho que lhe tomava um tempo absurdo e uma energia titânica. Tinha organizado listas num bloco de anotações. Batizou o bloco de "Eu, peão do engano". Ela o alimentava sempre que um dado importante lhe brotava. Muitas vezes esse novo-dado-antigo lhe remetia a outros, num efeito dominó incontrolável. Então, ela o separava no tempo e o encaixava nas listas. Um trabalho pessoal de resgate obstinado, uma obra obsessiva. Ela se dedicava à reconstrução mental do que fora destruído. Assentando tijolos-fatos. No início ela viu uma pilha de tijolos misturados. Uns intactos sobre outros mal processados. Uns perfeitos sob outros mal formatados; de forma que teve antes que separá-los. Imaginou então um terreno livre onde disporia as pilhas: a dos fatos-correlatos, a dos fatos-isolados, a dos fatos-injustificáveis, dos inesquecíveis, a dos incompreensíveis... E assim por diante. Foi sua primeira ação para em seguida dar início ao seu "projeto de reconstrução".
Inúmeras vezes deparou-se com a falta de um pedaço-fato; certamente perdido no trajeto entre a mágoa e o esquecimento. Outros que devem ter se esfacelado numa curva ilusória do tempo. Percebeu então a dificuldade que teria para refazer a obra. Porque quando encontrava um tijolo-correlato percebia em seguida um isolado. Quando ia á pilha dos inesquecíveis, tomava nas mãos um pela metade. Então, resolveu rever cada pilha isoladamente. E a que mais lhe tomou tempo foi à pilha dos tijolos-injustificáveis. Porque a dos fatos-correlatos foi passível de descontos baratos. A dos isolados se auto idultam. Os tijolos-incompreensíveis compõe naturalmente a liberdade de qualquer construção. E os inesquecíveis são obrigatórios.
Mas a pilha dos injustificáveis foi fatal. Então, percebeu que durante toda a construção-original, ela havia se permitido permear tijolos-injustos. Ela havia falhado na escolha e feito encaixes condenados. Reviu inelutavelmente cada um. Porque estavam neles a razão da implosão. E revisitou fileiras de tijolos-enganos com um sorriso de madura compreensão. Já não havia nela o peso doloroso do fracasso, nem a culpa dos distraídos. Já não havia nela a ânsia de buscar culpados. Começou então a esboçar um novo desenho.
Ou... "Peão do Engano"
 (Suzana)  

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