terça-feira, 12 de abril de 2011

Tu sabes...


Manhãs secas e caladas numa estrada pó de arroz da terra.
O tronco emudecido de saudade do orvalho acende a mata em chamas.
A imagem do cascalho no solo.

A noite maquiada de fumaça.
Uma estrela angustiada e sem graça namora uma lua velada.
No ninho do pássaro adormecido há folhas cobertas de tardes.
Numa taça de vinho e na vela perfumada um momento entre a dúvida e a entrega.
Poemas construídos de mãos e peles.
Rimas do amanhecer.
Estrofes de vento e fogo.

Num olhar difuso um carinho silencioso.
Um beijo numa madrugada de delícias.

Um pouco de abandono num riso partilhado.
Um pacto sobre o abstrato na troca do passado.

Rascunhos do futuro.
E na labuta de preparar canteiros do presente semear o existirmos mesmo à margem.
Tu sabes, a primavera não perdoa a terra sem aragem.

Ou "Ao pé do ouvido"
(Suzana)

Mesa na mata



A fruta em tempo certo explode a casca revelando uma semente entardecida.
Sob o sol a polpa se oferece avermelhada.
É tenra? É doce?
Madurada pelo vento, namorada pelo bico do pássaro lenhador,
surge intacta, inédita, protegida pelo estio da espera.
Atada ao galho original se expõe ao meu olhar que passa.
Numa vitrine de folhas, cipós-madeira, trepadeiras da mata,
formigas e abelhas fazem festa!
E nessa mesa minha boca não é convidada.
Apenas meu olhar se farta.


(Suzana)

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Um som...

Cronograma



Às vezes penso que não conseguirei te odiar por muito tempo.
Sei que vou sofrer (oh! sei que sofrerei)
Acordarei antes da hora ( ah! vigílias minhas!)
Perderei o rumo (desculpas tantas...)
Escreverei alucinadamente.
Te odiarei.
Minha existência (por algum tempo)
cuidará de ser: o caos no caos.
Às vezes penso que já sei o fim...
Irei a lugares (que até gosto)
serei polida (interessante talvez)
e se alguém me perguntar por ti, serei atriz.
Eu sei.
Às vezes penso que não saberei te lembrar com mágoa.
No início certamente ferida, depois (mais tarde) com ressalvas.
Sei que evitarei contato e não darei retorno (inevitável)
E cuidarei pessoalmente para que minha vida se torne: insuportável.
Estarei com pessoas (que até gosto)
serei receptiva (certamente amável)
e absolutamente decidida a mascarar a minha dor incontrolável.
Às vezes penso que não terei motivos para te odiar por muito tempo.
Porque haverá em mim uma transformação.
Alguém tecerá (de mim) um retrato imperfeito e equivocado,
mas estarei completamente dedicada a tornar a minha vida diferente!
Reunirei propostas, buscarei saídas, iniciarei nova safra de poemas.
Darei mais tempo a mim (não aos problemas!)
Ressurgirei de forma lenta em ritmo e cadência
até redescobrir a minha original essência.
Sei que me apaixonarei!
Pressinto novamente a rota.
Às vezes penso que são passagens já vividas
que me minha alma conhece, e eu alimento.
Por isso não te odiarei por muito tempo!

Ou "Cronograma"


(Suzana)

Quando...





Quando eu estiver sozinha e o campo semeado.
Verde tela em meio a brisa do outono
a lareira acesa, o chá na mesa,
e da janela romper uma franja de sol alaranjada
adocicando a lágrima da solidão...
Quando eu estiver quieta
mutismo infinito de quem comunga uma neblina de saudade
e me encolher como um gato em busca de calor
como um gato em mansidão de gesto  e olhar.
Quando as portas não tiverem mais saídas e a própria poesia se calar
quando a música, suave sinfonia, preencher os espaços do interior
e toda a casa for refúgio e lar.
Quando vieres com frio e eu te der o meu abraço,
e proteger tua cabeça com meu gorro de lã
e nossas almas se reconhecerem irmãs
e calcularmos definitivamente há quanto tempo!
Quando todo o corte estiver fechado e nenhuma cicatriz permanecer,
quando novamente sentares em meu espaço
e dividires comigo o teu menino coração.
E eu te mostrar o meu, de pés no chão, 
completamente esquecidos de qualquer friagem ou rancor.
Quando o tempo da paz pousar no outono
e o mútuo debruçar acontecer
nós saberemos (não tardiamente) "perceber".
Não me lançarás a pedra
não te levantarei a espada da palavra
por termos tecido um dia na trama de nossas vidas “o desencontro das linhas”
por termos caminhado nas paralelas dos trilhos
por termos inventado em nós o sonho dos andarilhos.
Tomaremos pois o chá num abraço de olhares aquecidos.

Ou "Doce erva”

(Suzana)

Olé!



Eterno conselho madrileño: Enfrenta o medo!
Fantasiado em tua arena, sonda o teu olhar frontal.
(Banderillero medieval!)
Te corta as asas.
Provoca a tua queda.
Interrompe o olé do teu toureiro.
Destroi impunemente o teu ponteiro.
Balançando as chaves do carcereiro.


Ou "Olé"


(Suzana)

domingo, 10 de abril de 2011

Renúncia









Chamei os anjos !
- Ave!
Pedi asas e acompanhamento para voar o caminho de volta ao centro.
E decifrar os signos desse sentimento
Quebrando os cristais do seu revestimento...
Como desfolhar pétalas.
Como descascar frutas.
Como descobrir essências.
E capturar o original momento em que meus pés
(como raízes velhas)
me encerraram no cativeiro desse encantamento.
E então, como a artesã que tece e espera,
ver despontar o dossel de nova primavera.

Ou "Renúncia das penas"

(Suzana)



Corpo de Dança III





Um depoimento aberto seria impublicável. Teria que mascarar palavras. Teria que ocultar as letras. Sem revelar. Trabalho por demais secreto, por demais cifrado, trabalho impossível.
As palavras são indomáveis aves e denunciam a migração. Elas voam e cumprem seu destino. Meu vôo aqui se faz no teu particular espaço vermelho. Onde a palavra anda nua, onde a palavra não se debate e pode mansamente declarar-se.
Começo pousando em teu olhar com asas recolhidas porque o meu busca o delicado signo da tua alma. Como ensaiando a rota que me levará ao ninho. No chão da tua casa encontro abrigo. Não me atraem as janelas abertas. Como se cativa esquecesse a vertigem das alturas. E me tornasse oculta e intransitiva.
Por trás das cortinas o sol faz festa. E em tua cama toda a narrativa dança numa tradução de símbolos exatos. Linguagem primitiva dos reencontros. Talvez herança...
Ou “Corpo de Dança III”
(Suzana)


quinta-feira, 7 de abril de 2011

Árabes contextos






Semeias palavras na madrugada que leio sonolenta e fascinada. São flores nas pontas dos teus dedos. Perfumadas. Todo o meu eu é refém. Estendo os pulsos, prisioneira. Mas são algemas encantadas. E a cela é inventada. Estendo os braços adormecida. Desejo ser colhida e libertada.
Em outra cena, num castelo, caminho entre castiçais. Trago no corpo telas tingidas, seda damasco, uma turquesa brilha em meu olhar. Persigo o som de sinos. Meu ventre dança livremente, é um alaúde vibrando em cordas matinais. Desejo ser interrompida e dedilhada.
Te encontro em tua tenda e tomo um chá. Passeio em teus segredos, “leio a sorte em folhas de hortelã”. Te enlaço levemente, anjo e cortesã. Desejo que me roube o amanhã.
Ou... Árabes contextos.

(Suzana)


Querença (Variações)






Querer (por manha) romper teu permitido olhar.
No fundo das pupilas colher uma textura, e dela uma fagulha, luz difusa num calor castanho.
Querer (por risco) romper teu permitido olhar.
Reter a trama e as trilhas em radares, sinais mesclados em antenas solares, e conhecer caminhos.
E descobrir tardes, vigílias, desenhos de dias, estradas, cenários.
Me abstrair nas surpresas de esquinas e perseguir silêncios repentinos.
Focalizar manhãs e destinos.
Querer (por sorte) romper teu permitido olhar.
E como num tear tecer o percurso das linhas do teu caminhar.

Ou...”Querença”
Variações de “Minha Leitura”

sábado, 2 de abril de 2011

Demasiadas...




São as palavras que traduzem os conceitos?E os conceitos? São cristalizados através do que?De imagens que desenham gestos?E os gestos são produtos do que?Das intenções?E as intenções brotam onde?Num canteiro pessoal?Decido que delicadeza vem do simples e exato ato de tocar o outro com tato. Defino que delicadeza é quando me perguntas "como estou"? Quando sabes que estou feliz! Quando o meu olhar descansa no teu e diz.
Ou "Demasiadas palavras"
(Suzana)

Palavra doce


A textura da asa do meu pensamento se assemelha à pétala de um cravo; e o movimento é sempre o de uma abelha retornando ao favo. Conceito do mel que lavra pensamento em palavra.  
Encontro confeitos e delícias que saboreio sob o cobertor. Levo sabores misturando cores - paleta de gourmet. Degusto Babette em javanês. Parfait de suspiros em português. Caminho pela casa espanhola recitando em chinês. Baba de moça na tela do holandês. Brinco nas caldas chilenas - me delicio com glassados do francês. Evito mas sempre abuso do fast-food do inglês. Banquete de açucares palavras.
(Suzana)

Cais II



Inventei um som que retém o passo em mim.
Como um mantra antigo.
O acho numa esquina exata e imutável sem precisar revirar partituras na memória.
Ele está sempre lá, sentado em lótus, olhos fechados, respirando em sol.
O busco toda vez que os cardeais se perdem, ou vendavais se acendem.
É manso e lento como o andar de um marujo.
Cálido como uma lembrança.
Tão intenso como dançar um tango no cais cinzento de Paraty.
(Suzana)








33 anos...

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Histórias para Júlio




Uma voz sussurra entre as folhas caídas no jardim. Tem por ouvintes uma lagarta em gestação, formigas apressadas, um pingo de chuva, um pedaço de papel, a tampa de uma caneta, e um palito de sorvete. Natureza com descasos de gente. A voz pede escuta. E o primeiro a estacar é o pingo de chuva, que curioso, desliza no graveto da folhagem e se diz presente. A voz então se aproxima e diz: “Penetra na terra, retorna ao céu, escolhe aquele broto ali, e vai...” Assustadas com o falatório, algumas formigas se distraem da labuta, desconstruindo a fila. A voz alerta: “A casa está em risco no lado esquerdo da raiz... Por conta de pés que cortam caminhos. Construam um atalho.” A lagarta que pendia num tronco, ensimesmada se atenta aflita ao noticiário. E a voz apenas a conforta: “Te acalma moça, aguarda as asas, teu colorido voará em breve.”
O palito de sorvete nesse instante se revira na terra e chega perto. A voz lamenta que esteja ali, estranho ao ambiente. Ainda que seja de madeira, vai cobrar tempo do canteiro. E ele, envergonhado, se sente um estrangeiro. A tampa de caneta já intui que a voz será feroz, e tenta inutilmente camuflar-se atrás de um galho de flor. Mimetismo no mínimo infeliz. A voz lhe diz: “Que horror! Quem a deixou aqui na eternidade de quatrocentos anos? Quantas gerações de flores verão sua presença?” E a tampa da caneta chora inconformada com tanta indiferença. O pedaço de papel, até então calado, se defende um pouco atrapalhado dizendo que no inverno, já desintegrado, não deixará seu rastro. A voz sorri e diz: “Mas que maltrato! Que defesa estranha, que papel trocado! Poderia ter sido um panfletário! Que alertasse o risco planetário! É tão urgente!” A voz caminha agora para as casas. Das gentes. (Histórias para Julio)
(Suzana)