sexta-feira, 1 de abril de 2011

Histórias para Júlio




Uma voz sussurra entre as folhas caídas no jardim. Tem por ouvintes uma lagarta em gestação, formigas apressadas, um pingo de chuva, um pedaço de papel, a tampa de uma caneta, e um palito de sorvete. Natureza com descasos de gente. A voz pede escuta. E o primeiro a estacar é o pingo de chuva, que curioso, desliza no graveto da folhagem e se diz presente. A voz então se aproxima e diz: “Penetra na terra, retorna ao céu, escolhe aquele broto ali, e vai...” Assustadas com o falatório, algumas formigas se distraem da labuta, desconstruindo a fila. A voz alerta: “A casa está em risco no lado esquerdo da raiz... Por conta de pés que cortam caminhos. Construam um atalho.” A lagarta que pendia num tronco, ensimesmada se atenta aflita ao noticiário. E a voz apenas a conforta: “Te acalma moça, aguarda as asas, teu colorido voará em breve.”
O palito de sorvete nesse instante se revira na terra e chega perto. A voz lamenta que esteja ali, estranho ao ambiente. Ainda que seja de madeira, vai cobrar tempo do canteiro. E ele, envergonhado, se sente um estrangeiro. A tampa de caneta já intui que a voz será feroz, e tenta inutilmente camuflar-se atrás de um galho de flor. Mimetismo no mínimo infeliz. A voz lhe diz: “Que horror! Quem a deixou aqui na eternidade de quatrocentos anos? Quantas gerações de flores verão sua presença?” E a tampa da caneta chora inconformada com tanta indiferença. O pedaço de papel, até então calado, se defende um pouco atrapalhado dizendo que no inverno, já desintegrado, não deixará seu rastro. A voz sorri e diz: “Mas que maltrato! Que defesa estranha, que papel trocado! Poderia ter sido um panfletário! Que alertasse o risco planetário! É tão urgente!” A voz caminha agora para as casas. Das gentes. (Histórias para Julio)
(Suzana)

Um comentário:

  1. Encanto-me com suas histórias, com seus escritos e recados.

    Beijos na alma.

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